sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Diário do Internato 02 - E o internato começou de verdade

  A desproporção temporal entre as postagens e o acontecimento real dos fatos parece estar se tornando a tônica deste espaço. E este fato é esperado, pois como diz o título, o internato começou de verdade. Apesar da escassez de tempo, há novidades reservadas aos leitores. Espero que apreciem a leitura.

  A segunda semana de internato foi incrivelmente mais interessante que a anterior, e com certeza entra para o hall das melhores semanas deste ano, quiçá de todo o internato. Começando no domingo a 12/01/2014, plantão de 6 horas no politrauma do hospital Regional com início às 18:00. O primeiro plantão oficial, tendo sido realizado junto ao meu parceiro de plantões, James Otieno. Primeiro fomos ao centro cirúrgico para colocar as roupas da cirúrgica.    O verde da esperança de salvar vidas, sendo o mesmo verde que mantém a visão humana dentro da lucidez perante os tons de vermelho em cirurgias. Neste ínterim, discutíamos sobre como seria este começo de rotina de plantões. Concluímos que seria esperado e ideal que pudéssemos antes conhecer a equipe e o serviço antes de começar, além é claro, de clarificar qual seria nossa função e o que seria exigível de nós. Fato é que isto não ocorreu, consonante com o que antecipamos.

  O plantão começa sem muita cerimônia, há que se chegar ali como se o conhecêssemos há tempos. Senti-me confortável pois no fim do ano passado e ao início da primeira semana de internato pude interar-me de boa parte do serviço. Foi, portanto, um início tranquilo. Aplicação do ABCDE do ATLS a cada caso trazido. Anamnese sucinta, triagem simples. Indagamos circunstâncias importantes da ocorrência, para definir cinemática do trauma, déficit neurológico, entre outros.

  Ao atender, pensamos em um longo e único período: “Vias aéreas pérvias, colar cervical, prancha rígida, frequência respiratória = 18, murmúrio vesicular presente bilateralmente sem ruídos adventícios, frequência cardíaca = 80, pressão arterial = 122x84 mmHg, bulhas rítmicas normofonéticas a 2 tempos sem sopros, Glasgow 15, pupilas isofotorreagentes, abdome plano, flácido, indolor à palpação e sem dor à descompressão brusca, sem deformidades e fraturas em membros superiores e inferiores”.  Sempre traduzindo para: “A) VAP, CC, PR; B) FR=18, MV + SRA; C) FC = 80, PA 122x84mmHg, BRNF2TSS; D) Glasgow 15, PIFR; E) abdome plano, flácido, indolor à palpação e DB - , s/ deformidades e fraturas em MMSS e MMII”. Telegráfico. Avaliação radiológica, “Rx trauma”. Reavaliação repetindo ABCDE. E se Deus quiser, alta da cirurgia geral e avaliação da ortopedia, em cenários otimistas. Próximo.

  Este plantão transcorreu de uma forma tranquila, sem comorbidades tão significantes como por exemplo uma parada cardiorrespiratória. Apenas gostaria de salientar que embora haja uma inclinação acadêmica, os plantões no politrauma envolvem um certo aprendizado por pressão. É evidente que em nenhum momento as maiores responsabilidades caem sobre os internatos, porém o interno é em geral deixado à própria sorte, e depende dos residentes para aprender algo no início – estes, embora tenham boa vontade, raramente são permitidos a explicar as coisas para os internos, devido à demanda de serviço. Isto é algo que deveria ser repensado nos plantões, pois o aprendizado depende muito do interesse dos alunos – gerando a partir daí uma discrepância desinteressante entre os acadêmicos. Minha opinião, apenas.

  Os próximos dias envolveram a audiência a cirurgias ortopédicas no centro cirúrgico do hospital Santa Lucinda no período matutino e ambulatório de ortopedia no período da tarde.

  Quinta-feira (16/01) abrigou novo plantão noturno, até 00:00 somente. Foi um plantão mais tranquilo que o anterior e não trouxe nada de novo em relação a antes.

  Quase ao final da semana, no sábado dia 18, plantão diurno de 12 horas com início às 07:00, mais uma vez no politrauma do hospital Regional.  Até o momento, o melhor dos plantões de que pude participar este ano, embora tenha a princípio foi bastante parado. Aliás, das 07:00 até as 13:00 não chegou nenhuma ocorrência. A única coisa que fiz nesse espaço de tempo foi uma sutura em região parieto-occipital em um paciente que iria para a neuro. Fora isso, fiz meus resumos de ortopedia enquanto ficava em prontidão para quando algo acontecesse. A partir de 13:15, porém, o dia mudou. As ocorrências consistiram sempre em pacientes com traumas de escoriações, ou seja, nada de vítimas fatais. Essas ocorrências que não são tão graves  e que têm bom prognóstico – embora também inspirem cuidados – são referidas em nosso meio pela gíria “polirralados”. Não é algo que deva ser empregado em meios formais e nem na frente dos pacientes, porém transmite bem a ideia que expliquei aos senhores. Não há conotação ofensiva no uso deste neologismo, porém ainda assim é prudente não usá-lo indevidamente.

  Pratiquei bastante sutura e bastante paciência, pois os pacientes em sua maioria chegavam embriagados. Tratando-se de um sábado depois do horário de almoço, é fácil portanto entender o padrão das ocorrências. Foi uma tarde cheia e ainda deu tempo de instrumentar uma cirurgia. Foi uma laparotomia em um caso de abdome agudo causado por pneumoperitônio – para quem não é do meio médico, trata-se do acúmulo de ar no peritônio (uma membrana que reveste internamente a cavidade abdominal) – que por sua vez foi devido à ruptura de uma úlcera duodenal. Foi a primeira vez que instrumentei uma cirurgia. Algo muito simples, mas que por ser a primeira vez, agora já tem um lugar especial em minha memória de médico hoje e sempre. Fui sair do hospital apenas às 20:30, bem atrasado e cansado, mas com a mente leve. Chegando em casa, fiz ainda algumas tarefas domésticas e logo em seguida, cama. 


sábado, 11 de janeiro de 2014

Diário do Internato 01 - A primeira semana no 5º ano

  O quinto ano de Medicina começou neste 2014 comigo acompanhando um plantão de Clínica Médica no CHS. Algumas horas antes do previsto para o ano letivo, entrei às 20:00 e lá fiquei até 01:00. Acompanhei minha namorada Bruna a princípio, mas logo fiquei na sala de emergência auxiliando na ventilação mecânica de um paciente (R) com aneurisma de arco aórtico. Aprendi o básico sobre como se faz a simples rotina de evolução dos pacientes e pude aplicar isso na prática.
  Foi bom estar em companhia de quem lá esteve a trabalho, pois independentemente do que impulsiona cada indivíduo a desempenhar uma função no hospital, existe com certeza o senso de um bem maior, mesmo que no mais profundo nível de consciência, e mesmo sem que os profissionais dêem conta disso. É um aforismo inspirador, mas que fomenta a ideia de que a excessiva latência do senso de cuidado ao próximo seria melhor adequada se fosse traduzida de fato em prática e intervenções. 

  Percebi por experiência própria e na prática o que já é de comum conhecimento: o serviço carrega falhas estruturais sérias que traduzem-se em menor eficácia dos cuidados e portanto maiores perdas e agravos aos pacientes, onerando usuários e funcionários do sistema. Há um atraso, algo que se opõe ao bom andamento das coisas, que parece vir do alto da hierarquia para os níveis restantes, perpetuando problemas e criando outros novos. 

  O hospital nem sempre tem apenas pacientes doentes. Mesmo sem enfermidades, é plausível dizer que estão quase todos doentes: funcionários, gestores e médicos - salvo, evidentemente, a algumas ilhas de lucidez que representam alguns deles. Um prédio doente, que sem instrumentos básicos e de baixos custos, sem respirador e sem fio-guia (não vou discorrer sobre tais faltas aqui, quem sabe em outro momento), apresenta-se com a faixada pintada. Maquiando a decadência em tinta fresca, atestando que o que a sociedade e seus gestores mais valorizam é a estética, e não a objetiva concretização das mais latentes necessidades. 

  Vejo no geral um conglomerado de desmotivação, que, salienta-se, encontra exceção apenas na presença de alguns poucos. Há que se pensar, não seria o hospital um reflexo de nossa sociedade, assim como tantos lugares? Por que estamos ali? Em que acreditamos? O que um doutorando do Curso Médico pode fazer de modo a ter uma influência - mesmo que pontual e diminuta - sobre tantos erros consecutivos? Como arrumar a bagunça alheia? 

  A resposta todos sabemos. Em um mundo ideal, se cada um - desde a limpeza, passando por estudantes, médicos, até os gestores -  aplicar com afinco e honestidade suas próprias funções, uma revolução para o bem poderia acontecer. Não vivemos em um mundo ideal, no entanto. 

  Por isso esses questionamentos permanecem em aberto. E estas linhas tratar-se-ão de registrar as reflexões e experiências vividas por alguém inserido neste meio. Quanto tempo levarão para ser respondidos, não posso dizer, e nem se serão respondidos. Posso dizer, no entanto, que neste blog não faltarão registros dedicados ao que todos nós - futuros médicos e médicos - devemos buscar e defender: a Medicina em favor da Vida.